segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Lançamento do livro 'Reza é que sara da loucura'

Reza é que sara da loucura,

ensinou João Guimarães Rosa na obra 'Grande Sertão: veredas',

da qual suscito algumas questões teológicas



quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

A renovação da esperança dos frustrados, a nova direita e os erros da esquerda

03.12.2018

A socióloga Rosana Pinheiro-Machado analisa o "bolsonarismo" e o cenário pós-eleição. "É a esquerda quem tem que oferecer mudança, mas ofereceu o mesmo de sempre", afirma

Patricia Facchin - IHU On-Line

IHU On-Line – A eleição de Bolsonaro e a ascensão da nova direita no Congresso representam pelo menos três fenômenos: “a falência dos partidos tradicionais do Brasil; um populismo atroz que mistura o que parece contraditório: ressentimento e esperança popular; e, por fim, o ataque à democracia tal como ela operou no Brasil até hoje”, resume a socióloga Rosana Pinheiro-Machado na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Rosana Pinheiro-Machado fala do papel da esquerda na crise (Joana Berwanger/Sul21)

Rosana Pinheiro-Machado, que tem realizado pesquisas com os eleitores de Bolsonaro na capital gaúcha, comenta o sentimento deles pós-eleições. “Eu vi muita esperança popular dos eleitores de Bolsonaro no final das eleições. Muita gente fala que foi a eleição dos ressentidos, amargos e frustrados. Eu penso que foi a renovação da esperança dos frustrados. Era uma esperança genuína de mudança”, relata. Mas o “afã bolsonarista deve diminuir em breve” e “pode se converter em nova frustração, e muito rápido”, afirma.

Para que a “esperança” não se transforme rapidamente em “frustração”, a socióloga frisa que “Bolsonaro precisará urgentemente tomar medidas populistas, como a liberação do porte de armas e melhorar a situação econômica do Brasil e a questão dos empregos, já que a informalidade e a precariedade não param de crescer”. Entretanto, adverte, “é possível acelerar a votação” de medidas populistas, “mas melhorar a situação econômica e combater a desigualdade social do Brasil com ultraliberalismo, aí já são outros quinhentos”.

Nesta entrevista, Rosana Pinheiro-Machado também comenta os erros cometidos pela “esquerda institucional” nos últimos anos, explica as características do bolsonarismo, e esboça algumas alternativas que a esquerda pode oferecer em contraposição ao bolsonarismo.

“Teoricamente”, diz, ela pode oferecer “tudo”, como “valores humanistas, emancipatórios e universalistas”. Já na prática, lembra, “o PT andou nos trilhos do negacionismo: da crise e de seus próprios erros”. E desabafa: “Fico muito frustrada de termos uma parte da nossa esquerda institucional que tenha sido tão fechada em si mesmo, tão errada em seus diagnósticos e que não compreendeu que existe uma pulsão de indignação no Brasil que é um prato cheio para a gente, porque indignação e revolta ‘contra tudo o que está aí’ é algo que a esquerda precisa para oferecer a mudança radical que acreditamos ser necessária. A esquerda é quem tem que oferecer mudança, mas não ofereceu: ofereceu o mesmo de sempre”.

Apesar de tudo, lembra, “existe a esquerda que se renova por si só, verdadeiramente popular, que é abraçada em alguns partidos como o PSOL. Mas é fundamentalmente autônoma, das ruas, das lutas pós-Junho de 2013, das ondas descentralizadoras, das ‘minorias’ e da primavera feminista”.

Rosana Pinheiro-Machado é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em Antropologia Social pela mesma universidade. Foi professora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Oxford de 2013 a 2016 e atualmente é professora titular visitante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) no PPG de Ciências Sociais, e coordenadora e cofundadora da Escola de Governo Comum.

O que a eleição de Bolsonaro e a ascensão da nova direita no Congresso significam para a política brasileira?

Significa a falência da política institucional brasileira não apenas na percepção popular, mas também na ocupação do Congresso. Significa a deterioração dos partidos tradicionais. Foi a grande vitória do PSL, que representou e capturou o grito “contra tudo que está aí”. Mas principalmente representou não apenas o antipetismo como estamos acostumados a analisar, mas uma derrota brutal do PSDB, que, com todo o tempo de televisão e com todo o dinheiro que teve, fez uma votação vergonhosa para presidente.

Se o impeachment representou para uma parte da população uma possibilidade de renovar o sistema político, o escândalo da JBS enterrou de vez essa possibilidade, mostrando, como dizem popularmente, “que eram tudo farinha do mesmo saco”. A crise econômica e a crise política, juntas, foram uma bomba-relógio pronta para explodir o populismo de direita, que segundo a definição do Cas Mudde (cientista político holandês), é a divisão da sociedade entre uma suposta elite corrupta e o resto “puro”, guardião da moral. Além disso, representa a corrosão das instituições democráticas pela via democrática, pelo voto. Destruir o sistema sem ter nada, mas nada mesmo, para oferecer em troca. Há hoje um amplo apoio de uma parte significativa da população em atacar os meios de comunicação, as universidades, etc. Esta parte da população que apoia o desmonte das instituições entende que a democracia tal como ela funcionou no Brasil não cumpriu sua promessa de bem-estar.

Então, resumindo: a eleição de Bolsonaro e de um Congresso extremamente conservador representa a falência dos partidos tradicionais do Brasil, um populismo atroz que mistura o que parece contraditório: ressentimento e esperança popular e, por fim, o ataque à democracia tal como ela operou no Brasil até hoje.

Que avaliação está fazendo do cenário pós-eleitoral no país?

É muito cedo. Impossível fazer uma aposta fechada. O que mais existe na história são exemplos de governos que começam de um jeito e terminam de outro. Nosso esforço, enquanto resistência e oposição, é forçar para que Bolsonaro ande na linha democrática. O custo para ele para não andar na linha é também altíssimo. Mas tudo isso depende de como a economia irá reagir. Eu vi muita esperança popular dos eleitores de Bolsonaro no final das eleições. Muita gente fala que foi a eleição dos ressentidos, amargos e frustrados. Eu penso que foi a renovação da esperança dos frustrados. Era uma esperança genuína de mudança. Para que essa esperança não se transforme em frustração rapidamente, Bolsonaro precisará urgentemente tomar medidas populistas, como a liberação do porte de armas e melhorar a situação econômica do Brasil e a questão dos empregos, já que a informalidade e a precariedade não param de crescer. Em relação às medidas populistas punitivistas, é possível acelerar a votação. Mas melhorar a situação econômica e combater a desigualdade social do Brasil com ultraliberalismo, aí já são outros quinhentos.

Eu tenho a impressão, portanto, de que esse afã bolsonarista deve diminuir em breve e que pode se converter em nova frustração, e muito rápido. Se isso ocorrer, Bolsonaro apostará suas fichas na distração popular: na caça de inimigos internos, na culpabilização de minorias, “vagabundos” e professores, numa certa depravação do povo. Historicamente, as questões morais no Brasil têm funcionado muito bem como bode expiatório porque elas remetem a um universo de significados que faz sentido popularmente. Culpar o kit gay é muito mais fácil do que a taxa da inflação. Então se eu fosse fazer uma aposta me baseando na escolha dos ministros da Educação (Ricardo Veléz Rodríguez) e das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), por exemplo, reconhecendo os limites de qualquer aposta neste momento, eu diria que a marca do bolsonarismo será ainda de muita perseguição a uma suposta doutrinação marxista-petista, não por convicção, mas como distração do povo, desviando o foco das críticas.

O que é o “bolsonarismo”?

Bolsonarismo dispensa Bolsonaro: é o que ele encarna. É um movimento que tem paralelos com diversos regimes fascistas que conhecemos e, sincronicamente, com a onda de populismo global. Todavia, eu gosto de pensar como um movimento brasileiro, com características brasileiras que estavam no integralismo, no malufismo e que, apesar de fazer parte de uma onda de contágio da extrema direita, atualiza um antigo conservadorismo moral e religioso, e nos lembra que os dados alarmantes de intolerância e violência contra indígenas, LGBTs, negros e mulheres não nascem do vácuo sociológico, mas de uma sociedade antidemocrática e, portanto, autoritária.

Bolsonarismo é também a nova cara populista e autoritária que o neoliberalismo atual tem utilizado para se recriar após a crise do capitalismo, caçando fantasmas e questionando séculos de conhecimento científico sobre a humanidade. De toda essa mistura de ingredientes autoritários, fascistas, conservadores e até obscurantistas, o que me assusta é menos o que Bolsonaro pode vir a falar ou a fazer, mas o que ele autoriza: o de dizer o que outrora era impensável, a aniquilar o outro.

Em artigo recente, a senhora disse estar “convencida” de que para analisar o bolsonarismo é preciso olhar para os regimes fascistas do Ocidente e para o autoritarismo da esquerda. Pode nos dar exemplos de traços de fascismo e de autoritarismo que percebe no bolsonarismo?

Bolsonarismo é um movimento de extrema direita e que, consequentemente, terá características fascistas (no aniquilamento do inimigo por uma lógica fundamentalista e nacionalista). Quando me referi ao autoritarismo da história da esquerda, referi-me pontualmente aos métodos do curto período da Revolução Cultural chinesa, cujas consequências podem nos ensinar algumas lições, como o que mencionei anteriormente: que a perseguição anti-intelectualista é um desvio de foco e que causa traumas e feridas profundas por décadas.

Mas o autoritarismo bolsonarista é de caráter duplo. De um lado, ele é típico autoritarismo do neoliberalismo global atual, que precisa usar do braço armado do Estado para garantir o contínuo cercamento do público e do “comum” e a contínua renovação do lucro das grandes corporações. De outro lado, ao surfar na onda de uma profunda crise econômica e política, o bolsonarismo cresce na forma clássica do autoritarismo: culto à personalidade, personificação da política, centralismo político, tendência à militarização do governo e repressão dos movimentos sociais. Sobre este último aspecto é bom lembrar que a onda anti-manifestação que pode ser deflagrada ganha legitimidade com a lei antiterrorista, a qual já tinha sido aprovada no governo Dilma.

O que a esquerda tem a oferecer em contraposição ao bolsonarismo?

Teoricamente, tudo. Valores humanistas, emancipatórios e universalistas. A insistência no valor da camaradagem ou da solidariedade democrática como um valor em que uma sociedade só pode existir pelo amor que existe para além de nossas famílias e laços particularistas, mas ampliando-os à comunidade e à humanidade em sua diversidade como um todo. Além disso, a esquerda tem a certeza de que o capitalismo não entrega suas promessas e que a desigualdade econômica e social não pode ser resolvida sem ampla política redistributiva.

Na prática, o PT andou nos trilhos do negacionismo: da crise e de seus próprios erros. A candidatura do Boulos representou uma ambivalência clara e evidente entre uma tentativa de se formar como herdeiro de Lula (o que não colou) e um radicalismo (no melhor sentido da palavra) do que ele representa das lutas populares.

Eu fico muito frustrada de termos uma parte da nossa esquerda institucional que tenha sido tão fechada em si mesma, tão errada em seus diagnósticos e que não compreendeu que existe uma pulsão de indignação no Brasil que é um prato cheio para a gente, porque indignação e revolta “contra tudo o que está aí” é algo que a esquerda precisa para oferecer a mudança radical que acreditamos ser necessária. A esquerda é quem tem que oferecer mudança, mas não ofereceu: ofereceu o mesmo de sempre.

Mas… existe a esquerda que se renova por si só, verdadeiramente popular, que é abraçada em alguns partidos como o PSOL. Mas é fundamentalmente autônoma, das ruas, das lutas pós-Junho de 2013, das ondas descentralizadoras, das “minorias” e da primavera feminista. Essa onda está furando as bolhas, está ocupando sem pedir passagem e, como brilhantemente mostrou a capa da New Yorker, está entrando nas festas para as quais não foi convidada. A esquerda institucional precisa parar de olhar para velhas (no sentido figurado) figuras e segurar o dinheiro para as suas campanhas, e investir nessa onda “grassroots” que vem das lutas populares.

Eu tenho dito que talvez tenha sido preciso o sistema todo ruir para que essa nova esquerda pudesse ganhar espaço, porque no arranjo institucional anterior, das democracias liberais, as mulheres, as LGBTs e os negros não tinham espaço.

Nos últimos anos a esquerda tem recebido muitas críticas. Na sua avaliação, quais foram os erros cometidos pela esquerda ao longo dos últimos anos e, posteriormente, no período eleitoral?

Errou em se afastar das bases populares no processo de institucionalização dos movimentos sociais e no modelo lulista de Estado gestor que transfere renda, mas vai aos poucos deixando de fomentar espaços coletivos democráticos. Errou em debochar ou escrachar tudo que não compreende com sua mentalidade do século XXI: Junho de 2013 à greve dos caminhoneiros. Errou em negar a crise econômica e fazer uma discussão honesta sobre corrupção, que é sim um problema sistêmico. Errou em achar que o bolsonarismo era nicho e em apostar todas as fichas no Lula, enquanto o antipetismo era orquestrado cada vez mais fortemente nos bueiros das fake news. Errou nos métodos de eleição: primeiro usou a máscara de Lula, depois no segundo turno o Lula desapareceu e deu espaço para uma narrativa que reivindica o verde e amarelo (oi? Houve quatro anos de deboche do verde e amarelo…).

Enfim, é uma série de erros que todos têm uma mesma causa: o autocentramento que ofusca a visão do brasileiro comum: aquele ser contraditório que assiste à Record, à Globo, que tem valores conservadores e que sente revolta do sistema, da política tradicional e das elites. Cada vez mais, nós da esquerda teremos que lidar com o contraditório e com as revoltas populares ambíguas. A história já nos ensinou que dizer #Eunãobatipanela ou #euavisei não serve para absolutamente nada. Às vezes penso nessa soberba medonha de uma parte da esquerda que pensa assim: “eu aqui sentado no meu sofá fico debochando do povo se ferrando porque daqui uns dias eles vão perceber que eu estava certo e se renderão à minha sabedoria”. Não, cara-pálida, não é isso o que vai acontecer e não foi isso que aconteceu. O que aconteceu é que se o povo se ferra, a radicalização política veio da direita, que, a propósito, não escolhe militante ideal.

Quais são os colapsos que evidencia no sistema político? Quais são as causas desse colapso?

Os colapsos políticos são conhecidos e já comentei: colapso dos partidos tradicionais e a descrença total da população na democracia e no status quo. Agora, o problema é que junto a isso nós tivemos uma crise econômica global. E o resultado de uma dupla crise como essa é o colapso de “tudo”: é o colapso e o questionamento de valores ocidentais, democrático, laicos e humanistas na carona. E isso é grave e profundo porque questiona todo o nosso chão e todos os nossos parâmetros e a gente percebe que não tem mais nada que podemos prever, nem em que nos ancorar como ética de verdade e como prática política. É desnorteador, mas também é uma oportunidade para que nós, da esquerda, possamos nos reinventar dessa antítese do mundo tal qual conhecemos.

Que tipo de oposição ao governo Bolsonaro é possível esperar da esquerda? A esquerda tende a continuar fragmentada na oposição ou não?

A frente de oposição é fácil de ocorrer no Congresso, mas não é suficiente. Precisamos ter uma frente ampla mesmo, incluindo todos os setores democráticos para tentar fazer um cordão de contenção para os excessos de Bolsonaro. De resto, as lutas populares seguem e fortalecem seu curso. As mulheres estão cada vez mais politizadas. Nós continuaremos crescendo, organizando manifestações, fazendo alianças interseccionais e cada vez mais ocupando cada espaço político que houver para ocupar.

Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/12/a-renovacao-da-esperanca-dos-frustrados-a-nova-direita-e-os-erros-da-esquerda

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Até onde vai “as liberdade” linguística?

30 de julho de 2011

Cleyton Vilarino

A chamada norma culta não é, a rigor, a língua de ninguém - Projeto Redigir*

Há décadas é ponto pacífico entre os acadêmicos que a língua é viva porque é propriedade cultural dos falantes, e se altera a partir de e com eles. Assim, a multiplicidade social, econômica, cultural e geográfica do Brasil resulta numa multiplicidade de maneiras de falar – seja no léxico, na fonética, ou na construção sintática.

Dessa maneira, a chamada norma culta, ensinada pelas gramáticas normativas, não é, a rigor, a língua de ninguém, a não ser a do falante ideal – que não existe. Ela é, na verdade, um conjunto de regras que adquiriu prestígio, não necessariamente por uma “evolução” linguística, como sugerem alguns colunistas, mas por estar associada à fala de grupos de maior prestígio social.

Todo linguista sabe disso, mas, ao contrário do que dá a entender a abordagem das reportagens e as análises que a elas se seguiram, nenhum jamais defendeu que se abandone o ensino da norma culta. O livro “Por uma vida melhor” também não defende, muito pelo contrário. A frase que escandalizou as redações é parte do capítulo introdutório de uma gramática normativa, que nada mais faz senão ensinar as regras da norma culta em todos os seus demais capítulos. Ademais, como o próprio título do capítulo mostra (“Escrever é diferente de falar”), o que se defende é que o aluno reconheça a variação possível na FALA.

Pelo que os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do MEC estabelecem desde 1997, o papel da escola é também estimular o uso crítico da linguagem. Por isso, os PNCs determinam que se discuta em sala de aula a variação linguística.

O aluno (e o professor) deve entender que usar a norma padrão com todos seus adjuntos, flexões e concordâncias na mesa de almoço da família, por exemplo, pode gerar afastamento e dificultar a comunicação entre os falantes. Assim como, numa entrevista de emprego, o uso de uma linguagem distante da norma padrão resultaria na não contratação. Propor ao aluno essa discussão permite que ele faça um uso crítico da linguagem, identificando seus vários registros, escolhendo o mais adequado para cada contexto, e exercendo suas habilidades de comunicação.

Ao mesmo tempo, discutir o tema permite ao aluno não reproduzir certo preconceitos linguísticos com a FALA do caipira ou do nordestino ou de pessoas com menor escolaridade. Todos vivenciamos nossa língua materna desde pequenos e somos perfeitamente capazes de nos comunicar por meio dela. Obviamente, não é papel da escola incitar o preconceito entre seus alunos. Logo, ela faz bem quando reconhece as diferenças e ensina o formal para que, inclusive, tais diferenças sejam melhor discutidas e a barreira entre elas rompida.

Entender a variação linguística como um fenômeno natural (sobretudo em se tratando de Educação de Jovens e Adultos) é reconhecer que o aluno vive uma realidade linguística anterior à sua alfabetização, e entender que essa realidade não deve ser vista com preconceito. Melhorar a autoestima do aluno é fundamental num processo de educação inclusiva.

A escola não deve relegar ao aluno um papel passivo, subestimando sua capacidade de dominar o próprio idioma. O aluno que se apropria do padrão culto e que sabe usar as variantes populares nas situações adequadas domina a língua portuguesa de maneira verdadeiramente “correta”, tornando-se sujeito de sua própria fala, capaz de conquistar sua emancipação e sua cidadania.

* Projeto Redigir é um projeto de extensão da Universidade de São Paulo que realiza curso gratuito de redação e gramática para jovens e adultos

Fonte: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2011/07/ate-onde-vai-as-liberdade-linguistica/#sim



A boa educação deverá ajudar a libertar as classes subalternas* - Evanildo Bechara

Partindo da tese central de que “escrever é diferente de falar”, a autora do livro “Por uma vida melhor”, Heloísa Ramos, encontra oportunidade para estabelecer a distinção do aprendizado da língua falada [aprende-se a falar a língua materna “espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor”] e da língua escrita [que “exige um aprendizado formal”. A partir dessa distinção, a Autora comenta: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio – vale lembrar que a língua é um instrumento de poder –, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular” (pág. 12).

Depois dessas conceituações válidas em Linguística e em Didática de língua materna, a Autora, partindo de redações de alunos e de livros, estuda o emprego do ponto para separar orações, algumas regras de acentuação gráfica, uso de pronomes oblíquos átonos nas suas diversas formas (o, lo, no) e flexões, emprego de ele como objeto direto na norma informal e concordância verbal e nominal. Tudo ia muito bem na sua descrição do português, quando o vezo do linguista fê-la, extrapolando, confundir-se com o professor de língua portuguesa, e pôr em relevo a nobilitação da norma popular em face do preconceito com que, na opinião da Autora, a classe “dominante” critica os menos escolarizados. E num local, momento e material impróprios defende a lição seguinte:

“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. “Você pode estar se perguntando: Mas eu posso falar ‘os livro’? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico” (p.15).

Assim também justifica as concordâncias ‘Nós pega o peixe’ e ‘Os menino pega o peixe’.

Como bem se referiu a Autora, em páginas atrás, que há “local, momento e material próprios” para ensinar a escrever e falar segundo o padrão da norma culta, acreditamos que a exposição até aqui não oferece o local, nem o momento, nem o material próprios para a defesa das aludidas discordâncias. Um livro que leva o aluno a empregar os pronomes oblíquos, nos exercícios da página 21: “não conseguiu localizá-lo”, “eliminaram-nas”, é porque está atento e comprometido com a melhoria dos jovens e adultos para quem foi escrito.

Outro momento que, a nosso ver, destoa deste propósito é ter perdido a Autora a oportunidade de oferecer aos leitores mais textos escritos que exemplificassem a norma culta; em vez disto, apresentar-lhes, com melancólico voto laudatório, a paródia de Juó Bananére Migna terra, vazada num improvável dialeto ítalo-português “oral de sua época”, contrário a tudo que vinha ensinando, numa oposição à Canção do exílio, de Gonçalves Dias, que mereceu da Autora o conceito de “postura ‘patriota’ extremamente sentimental”, poema que poderia ser aproveitado para comentários pertinentes a vários aspectos, entre os quais, casos linguísticos abonadores dos fatos explanados no capítulo. Gosto não se discute.

Como bem disse o linguista italiano Raffaele Simone, enquanto a posição populista perpetua a segregação linguística das classes subalternas, a boa educação linguística deverá ajudar a sua libertação. Esperamos que entenda nossas críticas e sugestões com o propósito honesto de ver o livro melhorado em próxima edição.

Evanildo Bechara é gramático e membro da Academia Brasileira de Letras - Artigo publicado originalmente no jornal “O Dia” de 22 de maio e cedido pela ABL ao Jornal do Campus -  

Fonte: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2011/07/ate-onde-vai-as-liberdade-linguistica/#nao