sexta-feira, 18 de maio de 2018

O tamanho da tragédia

03.05.2018

Janio de Freitas

As ocupações no centro de São Paulo são frutos ácidos da tragédia social
e de descaso governamental

Por um instante, estamos de volta a palavras e expressões como "tragédia", "descaso do poder público" e "problema de moradia" colhidas na fogueira de uma ocupação no centro de São Paulo. São verdades, mas pequenas verdades. A tragédia e o descaso são monstruosamente maiores.

As suspeitas começam com catástrofes históricas em ocupações e favelas, no centro
e nas periferias paulistanas, sempre em tempos de crise (Foto: pragmatismopolitico.com.br)

Diz-se, com base no IBGE, que há coisa de 8 milhões de imóveis desocupados no Brasil. E uns 7 milhões de famílias, bem mais de 20 milhões de pessoas, sofrendo o eufemismo "déficit habitacional". Não crer nesses números é uma sugestão amigável.

Moradias desocupadas, como as lojas, na crise e no desemprego multiplicaram-se em uma forma de denúncia involuntária do desastre que a direita, a certa altura, achou prudente silenciar. Os números de famílias e pessoas não incluem os que sobrevivem, entre a precariedade e a miséria total de seu teto e seu chão, em locais onde pesquisadores não entram.

Já na fermentação que preparou o golpe de 64, o "problema de moradia" teve uma influência de repente equiparada ao da reforma agrária. O número incalculável e crescente de imóveis desocupados chegou a evidências revoltantes, de 63 para 64.

No começo do acúmulo, contra a dificuldade de aumentos indiscriminados dos aluguéis e dos despejos, sujeitados à lei do inquilinato. Depois, pela propaganda anti-Jango de que o golpe comunista daria aos inquilinos a propriedade de suas moradias de aluguel.

O afoito ministro da Justiça, Abelardo Jurema, respondeu com o anúncio de uma próxima reforma urbana que desapropriaria todos os imóveis desocupados. Outra reforma vazia, mas fez crescer muito a agitação fomentada pelos colecionadores de casas e apartamentos vazios (costume entre donos de meios de comunicação da época) e respectivas, ou nem tanto, madames.

O então presidente do Sindicatos das Empresas de Jornais e Revistas, deputado Chagas Freitas, chegou a ter uma imobiliária para administrar seus mais de 500 imóveis.

A abolição da escravatura, a volta das tropas homicidas de Canudos, o "Bota Abaixo" da modernização urbana do Rio por Pereira Passos (a propósito, "A Revolta da Vacina", do sempre lembrável Nicolau Sevcenko, é excelente) deram origem às favelas e abriram a série longa de fases e episódios agudos do "problema de moradia".

Nenhum fez mudar coisa alguma, exceto a Lei do Inquilinato pelos militares, para favorecer aos proprietários os aumentos e os despejos de quem não pudesse pagá-los.

Os governos Lula e Dilma foram os primeiros a dedicar verbas e esforços de fato significativos à redução da carência de moradias com as condições básicas da dignidade humana. A constatação, porém, de uma qualquer deficiência em algum das centenas de milhares de imóveis entregues é motivo de escarcéu impresso e em telas, com a responsabilização dos dois governantes, não das construtoras que seguiram a praxe de roubar no material e na obra.

Muito simples e muito brasileiro: se Lula e Dilma não dedicassem dinheiro e esforço a reduzir a miséria habitacional, não seriam criticados nem igualados aos antecessores, todos poupados porque alheios às desgraças nacionais.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, MTST, não nasceu só para chatear. Tem causa como origem e causa como razão de ser.

As ocupações no centro de São Paulo não aumentaram à toa, em menos de cinco anos, de 42 para 70. Nem ocorrem e aumentam só aí. São frutos ácidos da tragédia social e de descaso governamental. Frutos estes, por sua vez, da lucrativa sociedade entre poder público e poder privado que desgraça o Brasil.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2018/05/o-tamanho-da-tragedia.shtml

terça-feira, 15 de maio de 2018

Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador

14.05.2018

Não era apenas a liberdade que estava em jogo, diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores pesquisadores da escravidão no Brasil. Outro tema na mesa era a reforma agrária

Amanda Rossi, BBC Brasil

Créditos da foto: Escravos trabalham em uma plantação de café no Brasil / THE NEW YORK PUBLIC LIBRARY

Em 13 de maio de 1888, há 130 anos, o Senado do Império do Brasil aprovava uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão. Não era apenas a liberdade que estava em jogo, diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores pesquisadores da escravidão no Brasil. Outro tema na mesa era a reforma agrária.

O debate sobre a repartição das terras nacionais havia sido proposto pelo abolicionista André Rebouças, engenheiro negro de grande prestígio. Sua ideia era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravos. O político Joaquim Nabuco, também abolicionista, apoiou a ideia. Já fazendeiros, republicanos e mesmo abolicionistas mais moderados ficaram em polvorosa.

"A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para não mexer na propriedade rural", diz Alencastro. Foi aí que veio a aprovação da Lei Áurea, sem nenhuma compensação ou alternativa para os libertos se inserirem no novo Brasil livre. "No final, a ideia de reforma agrária capotou".

Nesta entrevista para a BBC Brasil, o historiador fala ainda sobre a origem da violência do Estado atual contra os negros, afirma que a escravidão saiu da pauta e passou a ser vista como um passado distante, apesar de não ter acabado há tanto tempo assim, e critica o uso da palavra "diversidade" para se referir aos negros. "Falar de diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria. É muito mais que diversidade, é democracia".

Alencastro é hoje professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. É também professor emérito da universidade de Paris Sorbonne, onde lecionou por 14 anos, e autor do livro "O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul". Veja abaixo os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil - Como entender que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravidão nas Américas?

Luiz Felipe de Alencastro - O Brasil foi o último porque foi o que mais importou africanos - 46% de todos que foram trazidos coercitivamente para as Américas. Esse volume assombroso de africanos que chegou aqui acorrentado era considerado como uma propriedade privada. Isso cria uma dinâmica em que a propriedade escrava era muito importante. Muita gente tinha escravos. Nas cidades havia gente remediada que tinha um ou dois escravos. Os estudos mostram que a propriedade escrava no Brasil era muito mais difundida que na Jamaica ou no Sul dos Estados Unidos. Assim, muita gente, e não só os fazendeiros, achava que o país ia se arruinar se parasse de trazer africanos. Quase tudo dependia do trabalho escravo e da chegada dos africanos.

O Haiti é um caso limite, porque é primeiro país americano que chega à independência, com uma revolução feita pelos escravos (iniciada em 1791). É a única insurreição de escravos que chega ao poder no mundo. Já nos outros países em volta do Brasil, a escravidão não era importante. E era importante no Sul dos Estados Unidos.

Qual a diferença do processo de abolição no Brasil e nos Estados Unidos, em 1863?

No Brasil, a escravidão não era como nos Estados Unidos. Lá, a escravidão era regional, no Sul. No restante do país, havia uma economia agrícola independente e movimentos abolicionistas. Já no Brasil a escravidão era nacional, no país inteiro, e não havia um setor camponês independente. Por isso, o abolicionismo não tinha como crescer em regiões circunvizinhas às zonas escravistas. Como foi nos Estados Unidos? O norte do país, não escravista, elegeu Abraham Lincoln, do partido republicano, e que era contrário à expansão do escravismo nos novos territórios dos EUA e buscava uma solução negociada para extingui-lo nos estados onde ele existia. Isso causou a ruptura dos estados sulistas com a União. Ocorreu então uma guerra civil para acabar com a escravidão, uma guerra sangrenta, que traumatiza até hoje o país. Aqui não existia nenhuma parte do território em que a escravidão fosse ilegal. Então, mesmo que houvesse 60 escravos no Amazonas na mão de alguns senhores, esse grupo fechava com o partido escravocrata no Parlamento. Havia uma espécie de união nacional em torno do tráfico negreiro e da escravidão.




Já se disse que as grandes transformações do Brasil ocorreram sem participação popular, pelas mãos da elite política e econômica. A independência, a abolição, a República. Mas isso é verdade para a abolição?

José Bonifácio de Andrada, que era uma espécie de primeiro-ministro logo depois da independência do Brasil, mandou um projeto para a Assembleia Constituinte, prevendo a abolição progressiva do tráfico e da escravidão. Já naquele momento, a classe dirigente, o corpo da administração imperial tinham perfeita noção de que manter o tráfico de escravos criaria um impasse. Porque a Inglaterra deixara claro que só reconheceria a independência se o Brasil acabasse com o tráfico. E o governo inglês, nessa época, tinha uma importância enorme. Era como se fosse a ONU (porque garantia o reconhecimento diplomático internacional), o FMI (porque emprestava dinheiro para o governo) e a OIT (porque vetava a importação de africanos, mão-de-obra essencial no Brasil) juntos, com uma força naval que desde a batalha de Trafalgar (1805) mandava em todos os mares.

Quando a Inglaterra começou a pressionar mais fortemente, os dirigentes brasileiros cederam, prometendo acabar com o tráfico a médio prazo. Em 1831 é votado o fim do tráfico. Porém, sobretudo no Rio, e em menor medida na Bahia e no Recife, se organizam redes comércio semiclandestino de escravizados africanos. Só em 1850 , o comércio de africanos acabou de fato. Acabou de uma vez. Caiu de 60 mil africanos desembarcados em 1849 para 6 mil em 1851. Como? Porque houve um conchavo entre traficantes e governo. Se amanhã acabar o tráfico de cocaína na Colômbia, não é porque o consumo de cocaína acabou e de um dia para o outro os policiais ficaram virtuosos.

Que conchavo foi esse?

Os traficantes foram prevenidos antes que o tráfico ia acabar e foram tirando o dinheiro. Houve uma negociação entre a classe dirigente (a administração imperial) e a classe dominante (os fazendeiros, as oligarquias regionais). O governo propôs uma lei de imigração para trazer trabalhadores rurais, uma estrada de ferro na região cafeeira - porque o transporte era feito em lombo de mula - e a redução das tarifas de exportação de café.

Depois que o tráfico acabou, qual passou a ser a estratégia do Império?

Quando acaba o tráfico de escravos, acaba a fonte de reprodução externo do sistema escravista. Depois há a Lei do Ventre Livre em 1871 (que declarou livres os filhos de mães escravas que nascessem a partir daquela data). Isso estanca outra fonte de reprodução da escravidão, que é a reprodução demográfica interna. Dessa forma, houve uma estratégia gradualista para acabar com a escravidão.

Este gradualismo se resume nesta ideia: a escravidão acaba quando o último escravo morrer. Essa era a estratégia do Império. Aí ninguém perde dinheiro. Mas surge então o abolicionismo. É um movimento como as Diretas já!: abolição já! Não tem que esperar até o último escravo morrer para acabar com a escravidão. Vamos abolir já, e sem indenização para os proprietários de escravos. Joaquim Nabuco (político abolicionista) afirmou que o Brasil não tinha dinheiro para pagar os crimes que cometeu.




Qual foi a participação do movimento abolicionista? E o povo, participou?

O abolicionismo se acentuou na década de 1880. Há importante liderança negra. Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, que se batiam nos tribunais e nos jornais. Esses são os heróis. Também há muita gente anônima que participou. Houve movimentos organizados para dar fuga a escravos, por exemplo. Aqui em São Paulo, havia o grupo do Antônio Bento, os Caifazes. Havia um grupo em Recife, que ajudava os escravos a fugirem para o Ceará, onde a maioria dos municípios já não tinha mais escravos desde 1884, onde os escravocratas eram minoritários . Já o Rio de Janeiro era a província onde o escravismo era mais renitente. Em São Paulo, o oeste do Estado já estava apostando na imigração porque havia muita fuga, e a fuga é uma forma de revolta, dos escravos comprados no Nordeste. Essas ações acentuaram a crise do escravismo.

Também se falava de reforma agrária, dar terras para os ex-escravos.

A reforma agrária não estava na pauta da maioria dos abolicionistas. Foi uma radicalização de uma parte minoritária. André Rebouças, um engenheiro negro com muito prestígio, tinha um programa para criar um imposto territorial sobre as fazendas improdutivas e fundar cooperativas de pequenos camponeses. Nabuco, nos anos 1880, foi porta-voz dessas reivindicações. Mas no final, a ideia de reforma agrária capotou.

Por quê?

A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para trazer imigrantes que trabalhassem nas fazendas e não mexer na propriedade rural. Essa virada dos republicanos jogou Nabuco, Rebouças e outros no escanteio e os fez apoiar a monarquia até o fim. Depois disso, (no livro) "Minha Formação" (1900), Nabuco renega sua juventude abolicionista e faz uma declaração monarquista que constitui uma das frases mais infames da história da política brasileira: "Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de novembro (data da proclamação da República), lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio".




O projeto de reforma de Rebouças e Nabuco poderia ter ido para frente?

A relação de forças não era favorável. Não havia um movimento camponês a favor da reforma agrária, ou uma base popular lutando pelo o direito à terra. No final das contas, o Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária.

Além do campo, também havia muita escravidão nas cidades?

Se você somar a proporção de escravos no Rio com Niterói, você tem uma concentração urbana de escravos que não existiu em nenhum outro lugar no mundo, só no Império Romano. No Brasil, a escravidão também tinha essa característica urbana, em uma escala que não ocorreu nas Américas. A escravidão marcava as cidades. Em 1849, o Rio tinha 260 mil habitantes, 110 mil dos quais eram escravos. Isso dá 42% da população.

Como foi o dia seguinte à abolição? O que aconteceu com os escravos que se viram livres em 13 de maio de 1888, mas sem compensações, sem apoio do Estado para começar uma vida nova?

Na sequência da abolição, a mão de obra imigrante vai aumentando. Muitos ex-escravos ficam fora do mercado de trabalho na zona rural e, em parte, nas cidades. Mesmo sendo brasileiros, os ex-escravos não tiveram cidadania plena, porque a sua quase totalidade era analfabeta, e o voto do analfabeto foi proibido em 1882, ainda no Império. Este ferrolho para excluir os negros livres e os ex-escravos também atingiu os brancos pobres e analfabetos, como é óbvio. Até 1985, quando o voto deles foi permitido.

A escravidão foi um processo de muita violência. Essa violência usada contra os negros acabou quando a escravidão chegou ao fim?

A Constituição brasileira de 1824, no art. 179, proibiu punir crimes com castigo físico. A partir daquele momento, não se podia mais torturar - a inquisição portuguesa havia institucionalizado a tortura como prova, até a pessoa confessar. Vem então o Código Criminal de 1830 que especifica no art. 30: se o condenado for escravo ele não vai para a cadeia, a pena é transformada em açoite. Isso porque se o escravo fosse para cadeia, causaria uma perda de mão-de-obra e dinheiro para o seu senhor. Assim, o escravo era açoitado publicamente, humilhado, torturado. Depois, semanas depois, quando estivesse restabelecido (do açoitamento), o escravo voltava a trabalhar. Então, a tortura foi legal no Brasil até 1888, mas só para os escravos. Quando a abolição ocorre, a polícia já estava habituada a bater neles. Neles e nos brancos desfavorecidos. Como no caso do voto do analfabeto citado acima, os mecanismos da repressão escravista contaminam a sociedade inteira.




4,8 milhões de africanos aportaram como escravos no Brasil. É muito mais que em qualquer outro lugar no mundo. Nos Estados Unidos, foram menos de 400 mil. Por que a vinda de escravos para o Brasil foi tão grande?

São vários fatores. Do ponto de vista da navegação, há um sistema de correntes e ventos que aproxima muito o Brasil da África. A viagem de ida e volta para os portos brasileiros era 40% mais curta do que a dos navios saindo das Antilhas ou dos Estados Unidos, os quais enfrentavam turbulências na ida e na volta, quando atravessavam a zona equatorial. O Brasil também tinha mercadorias que eram trocadas por escravos, como tabaco e cachaça. Outro fator importante são as conexões do Brasil com os portos africanos. Quando a Corte portuguesa veio para cá, o Rio de Janeiro se tornou a capital do império português - isso incluía Angola, Moçambique... Também havia bases mercantis de interesse brasileiro lá - muito mais associadas ao Brasil do que a Portugal. Isso os americanos nunca tiveram. O negócio negreiro dos Estados Unidos era muito mais controlado pelos ingleses.

O terceiro fator é o boom do café, que aumentou muito o tráfico negreiro para o Centro-Sul do Brasil. Quem estava financiando isso em última instância? O operário e a classe média inglesa, francesa, russa, que estavam tomando café mais frequentemente. O café do Brasil não tinha concorrência. A partir de 1840, o Brasil vira o maior produtor mundial de café - e é o maior até hoje. Não foi assim com o ciclo do açúcar, que sofria concorrência das Antilhas.

Os próprios africanos participaram do comércio de escravos, não?

Os africanos desenvolviam comércio de escravos localizado, limitado aos circuitos regionais das zonas econômicas africanas. A articulação desse comércio interno ao comércio Atlântico - que era um dos setores mais dinâmicos da economia mundial, com companhias formadas, com acionistas investindo pesado - criou uma demanda de escravos que exacerbou o tráfico interno africano. Também houve a importação de armas europeias, dando maior impacto aos conflitos internos, que eram os mecanismos de criação mercantil de escravos. O comércio atlântico negreiro era um comércio totalmente europeu e brasileiro. Nunca houve um navio africano vendendo escravo nos portos das Américas.

Como a escravidão explica o país e a sociedade que o Brasil se tornou?

O tráfico negreiro em si explica muita coisa. Explica a unidade nacional, por exemplo. Quem quisesse se separar do governo do Rio de Janeiro, da Coroa, já sabia por antecipação que ia sofrer pressão da Inglaterra quando ficasse independente e teria que acabar com o tráfico. Quem estava melhor posicionado para moderar a pressão inglesa contra o tráfico transatlântico de africanos? O governo do Rio de Janeiro. Uma monarquia que tinha corpo diplomático bem plantado na Europa e era a única representante do sistema monárquico europeu nas Américas. A unidade nacional brasileira é um fenômeno inédito nas Américas. Falava-se a mesma língua. Mas da Patagônia até a Califórnia também se falava a mesma língua, o espanhol e os 4 vice-reinos espanhóis se fragmentaram virando 19 países.

Mas não é só. O tráfico também explica boa parte da diferença entre o Centro-Sul e o Nordeste do Brasil. O sucesso do primeiro não é porque teve mais espírito comercial. É por causa do café, mas também porque a rede negreira fluminense era mais extensa e mais eficaz na África que a dos negreiros pernambucanos ou baianos. Por isso, o café pode se expandir tanto.

130 anos é pouco tempo, só cerca de quatro gerações. Mesmo assim, parece muito distante. Por que temos a impressão de que a escravidão é um passado tão longínquo?

Eu conheci gente em Goiás que falava do tempo da escravidão. E há depoimentos de ex-escravos colhidos no Paraná, nos anos 1950. Por que parece que é tão longe? Logo depois da abolição o assunto saiu de pauta. Salvo para se ensinar que a abolição foi uma generosidade da Coroa, do governo, da redentora princesa Isabel. Daí o motivo do movimento negro ter proposto a troca do 13 de maio pelo 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), da princesa Isabel por Zumbi - numa luta política significativa. E depois veio também a imigração, criou-se uma outra história popular que não deixava muito espaço para a história dos afro-brasileiros.

A abolição foi uma farsa?

A abolição teve limites. Mas ela ocorreu, não foi farsa. Seria como dizer que a República foi uma farsa, que não acabou com a monarquia. A abolição acabou com a aberração gerada por um quadro institucional e legal que permitia uma pessoa ter como propriedade outra pessoa e seus descendentes, de maneira perpétua. A abolição também não foi uma benevolência da princesa ou do governo. A monarquia já estava caindo, fez uma última manobra e caiu ao tentar captar a plataforma abolicionista para enfraquecer o movimento republicano




O senhor é defensor das cotas...

O meu argumento das cotas é que elas são fundamentais para os negros, para os índios e para os pobres e os brasileiros em geral. São elas que vão consolidar a democracia plena no Brasil, com acesso à educação e ao trabalho.

Há quem defenda cotas por renda, não por cor...

A cota social apareceu como um argumento substitutivo dos que não queriam apoiar a cota racial. Ninguém falava em cota social no Brasil antes do movimento negro levantar a bandeira da política afirmativa racial - a favor dos negros e também dos índios, é importante lembrar. Trata-se de uma política baseada nas estatísticas étnicas dos Estados. Na região amazônica a proporção de jovens de origem indígena é importante e as cotas favoreceram a entrada deles nas universidades federais.

O Supremo Tribunal Federal votou unanimemente pela constitucionalidade das cotas, em 2012. Raras decisões do Supremo são unânimes. Juridicamente, a situação estava definida: os negros não sofrem descriminação legal, mas há mecanismos informais que os descriminam e desqualificam de forma óbvia. O censo de 2010 mostrou que a maioria da população é negra. Esse dado deve ser bem observado pela maioria dos progressistas e por setores do movimento negro que consideram a política afirmativa como um instrumento em favor da diversidade. É muito mais do que isso. É um instrumento em favor da democracia, do funcionamento do Estado, que favorece o país inteiro. Achar que ela garante a diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria.

O senhor também defende o ensino de história da África nas escolas.

A maioria das pessoas que chegaram aqui são africanos. É esse o dado que os professores têm que dar em reunião de pais e mestres, quando perguntam por que perder tempo com história da África. Ora, porque a África é mais importante para a formação do povo brasileiro do que a Ásia e boa parte da Europa e das Américas.

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Abolicao-da-escravidao-em-1888-foi-votada-pela-elite-evitando-a-reforma-agraria-diz-historiador/4/40223

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Documento da CIA sobre Geisel é perturbador

10.05.2018
 
Marcelo Rubens Paiva

Gal. Ernesto Geisel passa em revista as tropas (Foto: Arquivo)

Geisel entrou para a História como o ditador que controlou os excessos da “tigrada”.

Depois da morte sob tortura nos porões do Exército (DOI-Codi) do diretor de jornalismo da TV Cultura, Wladimir Herzog, em 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, em 1976, Geisel exonerou o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército.

Mais tarde, demitiu o general de linha-dura, Sylvio Frota, anunciou a política da Abertura, retirou os censores dos jornais e extinguiu o AI-5.

No entanto, o pesquisador brasileiro da FGV, Matias Spektor, encontrou um documento da CIA que contesta a imagem de bom pastor do ex-presidente.

É a primeira vez que aparece um documento que associa os nomes de Geisel e do general João Figueiredo em comandos de execução de presos políticos (“subversivos”).

O memorando de 11 de abril de 1974 que William Egan Colby (diretor da CIA entre 1973 e 1976) enviou ao Secretário de Estado, Henry Kissinger, tem um título nada sutil:

“Presidente brasileiro Ernesto Geisel decide continuar execução sumária de subversivos sob certas circunstâncias”.

Num texto curto de seis parágrafos, alguns deles ainda “not desclassified” (não liberados), o diretor relata que, em 30 de março de 1974, Geisel se reuniu com os generais Milton Tavares de Souza e Confúcio Danton de Paula Avelino, do Centro de Inteligência do Exército (CIE), e o general João Baptista Figueiredo, do Serviço Nacional de Inteligência (SNI).

Exatos 15 dias depois de tomar posse (15 de março de 1974).

Ouviu que o Brasil não poderia ignorar a “ameaça subversiva terrorista”.

O general Milton Tavares contou que métodos ilegais foram empregados contra “subversivos perigosos”, e que 104 pessoas foram sumariamente executadas pelo CIE nos últimos anos, diz a CIA.

Figueiredo apoiou a continuidade desse tipo de combate à subversão.

Segundo relatório da CIA, “em 1 de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que cuidados deveriam ser tomados para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados.”

No décimo aniversário do Golpe de 64.

“O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando a CIE prender uma pessoa que possa ser enquadrada nessa categoria, o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que a CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral da CIE será coordenado pelo general Figueiredo”, finaliza o memorando.

Pode-se então deduzir que o afastamento do general Ednardo foi por insubordinação; não pedira autorização para matar.

E que os combatentes da Guerrilha do Araguaia foram executados com aprovação do Planalto.

Assim como três dirigentes do PCdoB, Pedro de Araújo Pomar, Angelo Arroyo e João Batista Franco Drummond, executados na Lapa em dezembro de 1976.

A não ser que a demissão de Sylvio Frota em 1977 tenha relação a estas outras insubordinações.

Spektor escreveu na sua página do Twitter: “Este é o documento mais perturbador que já li em 20 anos de pesquisa: Recém-empossado, Geisel autoriza a continuação da política de assassinatos do regime, mas exige ao Centro de Informações do Exército a autorização prévia do próprio Palácio do Planalto.”

Fonte: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99?platform=hootsuite

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Desmonte e repactuação do Brasil

10.05.2018

Joaquim Ernesto Palhares

Os ciclos históricos têm começo e fim. O ciclo iniciado nas grandes greves do ABC dos anos 1970 e 1980 condensou impulsos que nos fizeram chegar até aqui. Agora já não tem mais a força necessária para nos levar adiante até porque as condições objetivas mudaram nesses quase 40 anos.

A classe trabalhadora brasileira também sofreu transformações. Gerações mudaram. A precarização avançou. Empregos de baixa qualidade predominam em um cenário de industrialização declinante.



Precisamos de novos instrumentos com abrangência e capilaridade para enfrentar o mais virulento cerco contra conquistas democráticas históricas, incluindo-se os direitos políticos, sociais e trabalhistas desde o golpe de 1964.

Sacrificar 90% da sociedade para gerar riqueza em benefício de 1%: esse é o programa econômico do conservadorismo para a encruzilhada atual do desenvolvimento brasileiro.

Não há nada mais importante nesse momento do que organizar a capacitação política do campo progressista para enfrentar a severidade dessa ofensiva que interdita a inauguração de um novo ciclo de avanço social e ameaça mergulhar o país num formol de sacrifício inútil e seletivo.

A hesitação diante da tarefa incontornável pode nos impor uma derrota por décadas.

Em 12 anos de governos de centro-esquerda demos passos efetivos na construção da nova fronteira de soberania no século XXI: aquela calcada na justiça social e em alianças internacionais progressistas. Mas descuidamos do indispensável: a contrapartida da organização popular capaz de sustentar e adicionar avanços a esse percurso.

A fatura chegou.

Sem o protagonismo de uma frente democrática e popular, profundamente enraizada em comitês populares de luta, afundaremos no limbo de um ciclo em que os derrotados nas urnas de 2002, 2006, 2010 e 2014 comandarão a economia, o Judiciário, a mídia, o parlamento e o imaginário social.

A ênfase é rebaixar o custo do trabalho, interditar o pleno emprego para sempre, minar os sindicatos, acuar o poder de barganha do trabalho, impor, enfim, o custo da crise e da restauração neoliberal nos ombros das famílias assalariadas.

O Brasil gasta pouco mais de 1% do PIB com todas as universidades públicas federais e com o Bolsa Família. Mas ainda destina 5,7% do PIB aos rentistas da dívida pública interna.

Cortamos o PAC, entregamos o pré-sal, definhamos o Minha Casa, implodimos a reforma agrária, congelamos os recursos para a escola e a educação. Mas a economia só faz patinar. A inadimplência é recorde atingindo 5,6 milhões de empresas e 61 milhões de brasileiros.

O assalariado está acuado; as empresas não vendem nem contratam; o investimento público é insuficiente até para reparar a depreciação de estradas, pontes, hidrelétricas.

Em resumo, não apenas estagnamos, estamos sendo arrastados por uma correnteza regressiva de consequências já visíveis na miséria e nos índices de violência.

O golpe empurra a oitava maior economia do planeta para um processo de mexicanização trágico. 

Vive-se o ocaso de uma nação, sob o comando de uma aliança do que de pior já se produziu no país, entre a mídia, a escória política, o dinheiro e o Judiciário.

Reverter esse quadro não é obra que se possa atribuir a uma liderança ou a um partido; e nem só à atividade política convencional. 

O Brasil necessita urgentemente viabilizar um novo braço coletivo que fale ao povo em diferentes idiomas: do político ao cultural, passando pelas formas de viver e de produzir em sociedade no século XXI.

Que seja, esse braço coletivo, maior do que a soma das partes, capaz de sacudir o torpor da esquerda, afrontar a soberba da direita, abrir espaço para a sociedade voltar a acreditar na sua capacidade e no poder da democracia para alargar as avenidas do futuro brasileiro. 

Listar plataformas e bandeiras é quase um truísmo, tão vertiginosa é a sua evidência na encruzilhada atual.

Afastar o país do desmonte neoliberal implica coibir a mobilidade dos capitais, taxar o lucro financeiro, os bancos, tributar a herança e a república dos acionistas e, assim, destinar fôlego fiscal à infraestrutura, à pesquisa, à competitividade, à saúde pública, à educação de qualidade, à moradia, à cultura.

Nada disso acontecerá sem romper um oligopólio de comunicação que envenena o discernimento social, sabota o pacto entre o desenvolvimento e a sociedade e interdita o debate democrático dos grandes desafios do nosso tempo.

O Brasil se inquieta, mas carece de uma direção clara e firme para sair do atoleiro e da prostração.

Em diferentes áreas, vicejam sementes da mobilização necessária para construir uma frente ampla democrática e progressista que abrace as tarefas de hoje e de amanhã.

Carta Maior, modestamente, quer contribuir com esse mutirão. 

No final da campanha de 2014, antevendo o esgotamento de um ciclo, ajudamos a criar o Fórum 21. Intelectuais, lideranças e quadros de todos matizes da esquerda têm se debruçado ali sobre os gargalos do desenvolvimento brasileiro.

Trata-se agora de sair da esfera dos colóquios dispersos e avulsos para o impulso de uma agenda unificada, prática e desassombrada.

Para isso, todavia, há um requisito: as lideranças políticas, na ausência de Lula, mas umbilicalmente sintonizadas a ele, falando pela voz dele, precisam ter a coragem histórica de criar a agenda e a frente ampla que a história cobra nesse momento.

É necessário instituir um comitê provisório de organizações e personalidades para oferecer uma referência clara de direção à sociedade. E que seja reconhecida como a voz coletiva de Lula, falando do Brasil para o Brasil e pelo Brasil.

Mirem-se na Espanha. E, sobretudo, na plataforma que empolgou Barcelona a conclamar seus cidadãos a construir uma cidade que afronte a precariedade, a incerteza, a mediocridade da vida miserável que nos reserva a lógica neoliberal.

É crucial dispor de um instrumento de comunicação para isso.

Sobretudo, porém, para que essa ferramenta deixe de ser uma miragem, para se tornar uma referência aglutinadora da ação, é preciso ter o discernimento claro sobre a engrenagem a afrontar.

O Especial 200 Anos de Karl Marx é uma contribuição neste sentido. O que ele enfatiza, com textos marxistas calcados na discussão concreta dos impasses do presente, é que a superprodução de capitais é a contraface indissociável da escassez de demanda, agravada pela precarização do trabalho em nossa época. 

Dessa servidão rentista, a sociedade não se livrará pela lógica de mercado. É forçoso organizar a resposta política a ela. 

Mas também de modo de vida. 

Não se pode recusar a servidão capitalista dos mercados, sem arguir igualmente seu padrão de consumo, por exemplo. Ou sua transformação da natureza em mercadoria. Ou da arte em analgésico.

Nenhum ajuste de mercado fará isso por nós – é esse o círculo de ferro que os textos aqui reunidos ensejam a romper. Foi com esse objetivo que corremos o risco de publicá-los em desafio à norma da simplificação e da frivolidade dominante.

O que o país precisa é que as forças progressistas assumam a contrapartida organizativa desse desassombro. Ou então o Brasil afundará refém da espiral descendente comandada pelos Temer, Moros, Frias, Marinhos, Bolsonaros e assemelhados.

Os textos desse especial –repita-se – não são afeitos à leitura apressada. Porém são dotados da urgência política que pavimenta a compreensão dos afazeres do nosso tempo.

Desejamos que nossos leitores e as lideranças políticas progressistas dediquem uma fatia de atenção a essa leitura. E extraiam daí as consequências históricas para o Brasil que poderíamos ser, mas do qual estamos sendo coagidos a desistir.

Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores”

10.05.2018

Borja Hermoso, El País

Prestes a completar 89 anos, o filósofo vivo mais influente do mundo está em plena forma. O velho professor alemão, discípulo de Adorno e sobrevivente da Escola de Frankfurt, mantém mão de ferro em seus julgamentos sobre as questões essenciais de hoje e de sempre, que continua destilando em livros e artigos. Os nacionalismos, a imigração, a Internet, a construção europeia e a crise da filosofia são alguns dos temas tratados durante este encontro na sua casa em Starnberg.

Jürgen Habermas e a crise da intelectualidade (Foto: Gorka Lejarcegi)

Ao redor o lago de Starnberg, a 50 quilômetros de Munique, se amontoam sucessivas fileiras de chalés de estilo alpino. A única exceção às esmagadoras doses de melancolia, madeira escura e flores nas sacadas surge na forma de um bloco branco e compacto de cantos suaves, com janelas grandes e quadradas como única concessão à sobriedade. É o racionalismo feito arquitetura no país da Heidi. A Bauhaus e sua modernidade raivosa no meio da Baviera eterna e conservadora. Uma minúscula placa branca sobre uma porta azul confirma que ali vive Jürgen Habermas (Düsseldorf, 1929), sem dúvida o filósofo vivo mais influente do mundo por sua trajetória, sua obra publicada e sua atividade frenética até hoje, quando falta um mês e meio para que complete 89 anos. Sua esposa há mais de 60 anos, a historiadora Ute Wesselhoeft, nos recebe no pequeno vestíbulo e demora apenas alguns segundos para girar a cabeça e exclamar: “Jürgen, os senhores da Espanha chegaram!”. Ambos habitam esta casa desde 1971, quando Habermas passou a dirigir o
Instituto Max Planck de Ciências Sociais.

O discípulo e assistente de Theodor Adorno, além de membro insigne da segunda geração da Escola de Frankfurt e ex-catedrático de Filosofia na Universidade Goethe de Frankfurt, avança vindo do seu escritório, uma adorável bagunça de papéis e livros em estado de caos, cujos janelões dão para uma floresta. Aperta a mão com força. É muito alto, caminha muito ereto e tem uma espetacular mata de cabelos brancos como a neve. Cumprimenta afável e convida a sentar num dos grandes sofás. O cômodo está decorado em tons brancos e areia e acolhe uma pequena coleção de arte moderna que inclui pinturas de Hans Hartung, Eduardo Chillida, Sean Scully e Günter Fruhtrunk e esculturas de Oteiza e Miró (esta última simboliza o Prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais recebido em 2003). Abre-se imponente ao visitante a biblioteca de Habermas, que aloja velhos volumes de Goethe e de Hölderlin, de Schiller e de Von Kleist, e fileiras inteiras de obras de Engels, Marx, Joyce, Broch, Walser, Hermann Hesse e Günter Grass, entre uma infinidade de escritores e pensadores.

“Não pode haver intelectuais comprometidos se já não há mais leitores a quem continuar alcançando com argumentos”

O autor de obras imprescindíveis do pensamento, da sociologia e da ciência política do século XX, como Mudança Estrutural da Esfera Pública, Conhecimento e Interesse, O Discurso Filosófico da Modernidade e Teoria da Ação Comunicativa, troca impressões com o EL PAÍS a respeito de alguns dos temas que lhe preocuparam durante seis décadas e continuam a preocupá-lo. Com uma exceção: o entrevistado preferiu evitar qualquer questão relacionada ao passado nazista de seu país e à sua própria experiência a respeito (foi membro das Juventudes Hitlerianas — por obrigação, como tantos compatriotas seus). Habermas está furioso. “Sim…, continuo furioso com algumas das coisas que ocorrem no mundo. Isso não é ruim, não é?”, brinca.

Borja Hermoso - Professor Habermas, fala-se muito na decadência da figura do intelectual comprometido. Considera justo esse julgamento? Não é frequentemente um mero tema de conversa entre os próprios intelectuais?

Habermas: a esfera pública de Zola a Sartre e Bourdieu sofrem acelerado processo de deterioração
(Foto: Gorka Lejarcegi)

Habermas: Para a figura do intelectual, tal como a conhecemos no paradigma francês, de Zola até Sartre e Bourdieu, foi determinante uma esfera pública cujas frágeis estruturas estão experimentando agora um processo acelerado de deterioração. A pergunta nostálgica de por que já não há mais intelectuais está mal formulada. Eles não podem existir se já não há mais leitores aos quais continuar alcançando com seus argumentos.

“A única forma de fazer frente às ondas mundiais de emigração seria combater suas causas econômicas nos países de origem”

É possível pensar que a Internet acabou por diluir essa esfera pública que antes talvez fosse garantida pela grande mídia tradicional e que isso afetou a repercussão dos filósofos e dos pensadores?

Sim. Desde Heinrich Heine, a figura histórica do intelectual ganhou importância junto com a esfera pública liberal em sua configuração clássica. No entanto, esta vive de certos pressupostos culturais e sociais inverossímeis, principalmente da existência de um jornalismo desperto, com meios de referência e uma imprensa de massa capaz de despertar o interesse da grande maioria da população para temas relevantes na formação da opinião pública. E também da existência de uma população leitora que se interessa por política e tem um bom nível educacional, acostumada ao processo conflitivo de formação de opinião, que reserva um tempo para ler a imprensa independente de qualidade. Hoje em dia, essa infraestrutura não está mais intacta. Talvez, que eu saiba, se mantenha em países como Espanha, França e Alemanha. Mas também neles o efeito fragmentador da Internet deslocou o papel dos meios de comunicação tradicionais, pelo menos entre as novas gerações. Antes que entrassem em jogo essas tendências centrífugas e atomizadoras das novas mídias, a desintegração da esfera populacional já tinha começado com a mercantilização da atenção pública. Os Estados Unidos com o domínio exclusivo da televisão privada é um exemplo chocante disso. Hoje os novos meios de comunicação praticam uma modalidade muito mais insidiosa de mercantilização. Nela, o objetivo não é diretamente a atenção dos consumidores, mas a exploração econômica do perfil privado dos usuários. Roubam-se os dados dos clientes sem seu conhecimento para poder manipulá-los melhor, às vezes até com fins políticos perversos, como acabamos de saber pelo escândalo do Facebook.

O pensador alemão aparece numa janela da casa onde vive com sua esposa, Ute, desde 1971.
(Foto: Gorka Lejarcegi)

O senhor acredita que a Internet, para além de suas indiscutíveis vantagens, criou uma espécie de novo analfabetismo?

O senhor se refere às controvérsias agressivas, às bolhas e às histórias falsas de Donald Trump em seus tuítes. Deste indivíduo não se pode dizer sequer que esteja abaixo do nível da cultura política de seu país. Trump baixa esse nível constantemente. Desde a invenção do livro impresso, que transformou todas as pessoas em leitores potenciais, foi preciso passar séculos até que toda a população aprendesse a ler. A Internet, que nos transforma todos em autores potenciais, não tem mais do que duas décadas. É possível que com o tempo aprendamos a lidar com as redes sociais de forma civilizada. A Internet abriu milhões de nichos subculturais úteis nos quais se troca informação confiável e opiniões fundamentadas. Pensemos não só nos blogs de cientistas que intensificam seu trabalho acadêmico por este meio, mas também, por exemplo, nos pacientes que sofrem de uma doença rara e entram em contato com outra pessoa na mesma condição em outro continente para se ajudar mutuamente com conselhos e experiências. Sem dúvida, são grandes benefícios da comunicação, que não servem só para aumentar a velocidade das transações na Bolsa e dos especuladores. Sou velho demais para julgar o impulso cultural que as novas mídias vão gerar. O que me irrita é o fato de que se trata da primeira revolução da mídia na história da humanidade que serve antes de tudo a fins econômicos, e não culturais.

No cenário hipertecnologizado de hoje, onde triunfam os saberes úteis, por assim dizer, qual o papel e sobretudo qual o futuro da filosofia?

Veja, sou da antiquada opinião de que a filosofia deveria continuar tentando responder às perguntas de Kant: o que é possível saber?, o que devo fazer?, o que me cabe esperar? e o que é o ser humano? No entanto, não tenho certeza de que a filosofia, como a conhecemos, tenha futuro. Atualmente segue, como todas as disciplinas, a corrente no sentido de uma especialização cada vez maior. E isso é um beco sem saída, porque a filosofia deveria tentar explicar o todo, contribuir para a explicação racional de nossa forma de entender a nós mesmos e ao mundo.

“Macron me inspira respeito porque, no paralisante cenário atual, é o único que se atreve a ter uma perspectiva política e que demonstra coragem”

O que resta de sua orientação marxista? Jürgen Habermas continua sendo um homem de esquerda?

Estou há 65 anos trabalhando e lutando na universidade e na esfera pública em favor de postulados de esquerda. Se há 25 anos advogo pelo aprofundamento político da União Europeia, faço isso com a ideia de que apenas esse regime continental poderia domar um capitalismo que se tornou selvagem. Jamais deixei de criticar o capitalismo, nem tampouco de ter consciência de que não bastam diagnósticos vagos. Não sou desses intelectuais que atiram a esmo.

Kant + Hegel + Iluminismo + marxismo desencantado = Habermas. Essa equação é suficiente para resolver o “x” de sua ideologia e pensamento?

Se é preciso expressá-los de forma telegráfica, estou de acordo, apesar de ainda faltar uma pitada da dialética negativa de Adorno...

O senhor cunhou em 1986 o conceito político do patriotismo constitucional, que hoje soa quase medicinal diante de outros supostos patriotismos de hino e bandeira. É muito mais difícil exercer o primeiro do que o segundo, não?

Em 1984, pronunciei uma conferência no Congresso espanhol a convite de seu presidente, e no fim fomos comer em um restaurante histórico. Ficava, se não me engano, entre o Parlamento e a Porta do Sol, na calçada da esquerda. Seja como for, durante a conversa animada com nossos impressionantes anfitriões — muitos deles eram colegas socialdemocratas que tinham participado da redação da nova Constituição do país —, minha esposa e eu nos inteiramos de que nesse lugar tinha acontecido a conspiração para preparar a proclamação da Primeira República espanhola de 1873. Ao saber disso, experimentamos uma sensação totalmente diferente. O patriotismo constitucional exige um relato apropriado para que tenhamos sempre presente que a Constituição é a conquista de uma história nacional.

E nesse sentido o senhor se considera um patriota?

Me sinto patriota de um país que, finalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, deu à luz uma democracia estável, e ao longo das décadas subsequentes de polarização política, uma cultura política liberal. Hesito em declarar isso e, de fato, é a primeira vez que faço isso, mas nesse sentido sim, sou um patriota alemão, além de um produto da cultura alemã.

Jürgen Habermas lê na sala da sua casa em Starnberg, perto de Munique. 
(Foto: Gorka Lejarcegi)

De que cultura alemã? Só há uma ou há culturas alemãs?

Sinto-me orgulhoso dessa cultura também em relação à segunda ou terceira geração de imigrantes turcos, iranianos, gregos, ou de onde quer que tenham chegado, que aparecem de repente na esfera pública como cineastas, jornalistas e os apresentadores de televisão mais fabulosos; como executivos e os médicos mais competentes, ou como os melhores literatos, políticos, músicos e professores. Tudo isso constitui uma demonstração palpável da força e da capacidade de regeneração de nossa cultura. A rejeição agressiva dos populistas de direita contra as pessoas sem as quais essa demonstração teria sido impossível é uma bobagem.

Acredito que o senhor prepara um novo livro sobre a religião e sua força simbólica e semântica como remédio para certas lacunas da modernidade. Pode nos contar um pouco desse projeto?

Bem, na verdade este livro não fala tanto de religião, mas de filosofia. Espero que a genealogia de um pensamento pós-metafísico desenvolvido a partir de um discurso milenar sobre a fé e o conhecimento possa contribuir para que uma filosofia progressivamente degradada como ciência não esqueça sua função esclarecedora.

Falando de religiões e de guerra de religiões e culturas, levando-se em conta o atual nível de intransigência e os fundamentalismos de todo tipo, o senhor acredita que rumamos para um choque de civilizações? Será que já estejamos imersos nele?

Em minha opinião, essa tese é totalmente equivocada. As civilizações mais antigas e influentes se caracterizaram pelas metafísicas e as grandes religiões estudadas por Max Weber. Todas elas têm um potencial universalista, e por isso se construíram sobre a base da abertura e da inclusão. A verdade é que o fundamentalismo religioso é um fenômeno totalmente moderno. Remonta à alienação social que surgiu e continua surgindo em consequência do colonialismo, da descolonização e da globalização capitalista.

O senhor escreveu certa ocasião que a Europa deveria fomentar um islã ilustrado e europeu. Acredita que isso esteja ocorrendo?

Na República Federal Alemã nos esforçamos por incluir em nossas universidades a teologia islâmica, de forma que possamos formar professores de religião em nosso próprio país e não tenhamos de continuar importando-os da Turquia ou de outros lugares. Mas, na essência, esse processo depende de conseguirmos integrar verdadeiramente as famílias imigrantes. No entanto, isso nem de longe é suficiente para conter as ondas mundiais de imigração. A única maneira de enfrentar isso seria combater as causas econômicas nos países de origem.

E como se faz isso?

Não me pergunte como se faz isso sem mudanças no sistema econômico mundial do capitalismo. É um problema de séculos. Não sou especialista, mas leia o livro de Stephan Lessenich Die Externalisierungsgesellschaft [A sociedade da externalização] e verá que a origem das ondas que agora refluem para a Europa e o mundo ocidental está exatamente nisso.

“A Europa é um gigante econômico e um anão político.”
Assinado: Jürgen Habermas.

Nada parece ter ficado melhor depois do Brexit, dos populismos e extremismos, dos movimentos nazistas, das tentativas nacionalistas de separação da Escócia e Catalunha...

A introdução do euro dividiu a comunidade monetária em norte e sul, em vencedores e perdedores. A causa é que as diferenças estruturais entre as regiões econômicas nacionais não podem ser compensadas se não se avança no sentido da união política. Faltam válvulas, como por exemplo a mobilidade em um mercado de trabalho único ou um sistema de segurança social comum, e faltam competências europeias para uma política fiscal comum. A isso se acrescenta o modelo político neoliberal incorporado aos tratados europeus, que reforça mais ainda a dependência dos Estados nacionais em relação aos mercados globalizados. O elevado desemprego juvenil nos países do sul é um escândalo absurdo. A desigualdade aumentou em todos os nossos países e erodiu a coesão populacional. Os que conseguem se adaptar aderem ao modelo econômico liberal que orienta a ação em benefício próprio; entre os que se encontram em situação precária, espalha-se os medos regressivos e as reações de ira irracionais e autodestrutivas.

O senhor acompanha de perto o problema catalão? Qual a sua opinião e diagnóstico?

Realmente qual é o motivo de um povo culto e avançado como a Catalunha desejar estar sozinha na Europa? Não entendo. Me dá a sensação de que tudo se reduz a questões econômicas... Não sei o que vai acontecer. O que lhe parece?

Acredito que pensar em isolar politicamente uma população de cerca de dois milhões de pessoas com aspirações independentistas não é realista. E sem dúvida não é simples...

Sem dúvida é um problema, sim. É muita gente.

Jürgen Habermas fala com muita dificuldade, pois nasceu com fissura labiopalatina. Uma pequena tragédia pessoal para alguém cuja missão filosófica primordial sempre foi valorizar a linguagem e a dimensão social e comunicativa do homem como remédio de tantos males (tudo isso compilado em sua célebre Teoria da ação comunicativa). O velho professor se mostra realista e resignado quando, olhando pela janela, sussurra: “Já não gosto dos grandes auditórios nem dos grandes salões. Não entendo bem as coisas. Há uma cacofonia que me desespera”.

Professor, o senhor considera os Estados-nação mais necessários do que nunca ou, pelo contrário, acredita que de alguma forma estão superados?

Hum, talvez não devesse dizer isso, mas considero que os Estados-nação foram algo em que quase ninguém acreditava mas que precisaram ser inventados em seu tempo por razões eminentemente pragmáticas.

Sempre culpamos os políticos pelo fracasso da construção europeia, mas nós, cidadãos comuns da UE, não temos nossa parcela da culpa? Nós, europeus, realmente acreditamos na europeidade?

Vejamos... Até agora as lideranças políticas e os governos levaram adiante o projeto de maneira elitista, sem incluir as populações dos países nessas questões complexas. Tenho a impressão de que sequer os partidos políticos e os deputados dos Parlamentos nacionais se familiarizaram com a complicada matéria da política europeia. Sob o lema “mamãe cuida do seu dinheiro”, Merkel e Schäuble protegeram durante a crise, de forma verdadeiramente exemplar, suas medidas contra a esfera pública.

A Alemanha conserva uma vocação de liderança europeia? A Alemanha confundiu às vezes liderança com hegemonia? E a França? Que papel deve desempenhar o país liderado por seu querido presidente Macron?

Seguramente, o problema foi, na verdade, que o Governo federal alemão sequer teve o talento ou a experiência de uma potência hegemônica. Do contrário teria sabido que não é possível manter a Europa unida sem levar em conta os interesses dos demais Estados. Nas duas últimas décadas, a República Federal agiu cada vez mais como uma potência nacionalista no terreno econômico. No que se refere a Macron, continua tentando persuadir Merkel de que é preciso pensar em sua imagem com vistas aos livros de história.

Que papel o senhor acredita que a Espanha pode desempenhar na melhoria da construção europeia?

A Espanha simplesmente tem de respaldar Macron.

Em artigos recentes o senhor defendeu com paixão a figura do presidente Macron que, veja só, é filósofo como o senhor. O que mais o atrai nele? Acredita que é um bom político por ser filósofo?

Por Deus, nada de governantes filósofos! No entanto, Macron me inspira respeito porque, no cenário político atual, é o único que se atreve a ter uma perspectiva política; que, como pessoa intelectual e orador convincente, persegue as metas políticas acertadas para a Europa; que, nas circunstâncias quase desesperadas da contenda eleitoral, demonstrou valor pessoal e que, até agora, em seu cargo de presidente, faz o que disse que ia fazer. E em uma época de perda de identidade política paralisante, aprendi a apreciar essas qualidades pessoais contrárias às minhas convicções marxistas.

No entanto, é impossível no momento saber qual é a ideologia dele... caso exista.

Sim, tem razão. Até o momento continuo sem ver claramente que convicções estão por trás da política europeia do presidente francês. Gostaria de saber se pelo menos é um liberal de esquerda convicto, e isso é o que espero.

Esta entrevista, que se pode realizar graças à colaboração do professor e escritor Daniel Innerarity, é um cruzamento de caminhos entre respostas oferecidas por escrito e trocas de impressões durante aquela manhã em Starnberg. Quando a conversa terminou, o único sobrevivente da segunda Escola de Frankfurt desapareceu de repente atrás da porta da cozinha de sua casa. Voltou com um sorriso cúmplice no rosto, trazendo uma garrafa de Rioja em uma mão e uma de Riesling na outra. Espanha e Alemanha, juntas na casa de Habermas.

Fonte: Jornal El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/25/eps/1524679056_056165.html